Para pesquisador da Unicamp, aplicativos de entrega poderiam contribuir mais com setor

A solidariedade é um ativo valioso para o empreendedorismo no ramo da alimentação no Brasil. Que atire a primeira pedra quem nunca se sensibilizou com a história de alguém vendendo algum produto com a justificativa de que está complementando sua renda, ou de que decidiu ser seu próprio patrão dando asas ao talento na cozinha e começou a vender os quitutes que prepara para a família e amigos. Nos últimos anos, dois fatores contribuíram para impulsionar os negócios de quem decide se arriscar no ramo da alimentação: a consolidação de aplicativos e plataformas digitais de entregas de refeições, como iFood e Rappi, nos hábitos de consumo dos brasileiros, que operam como vitrine para uma grande diversidade de produtos; e a pandemia de covid-19, que obrigou quem tinha o hábito de frequentar restaurantes a ficar em casa e pedir sua comida em domicílio.

Neste cenário, o coração sente o desejo de ajudar um comerciante e o corpo sente a comodidade de receber em casa um sanduíche, uma sobremesa ou até um prato de culinárias exóticas. Mas os olhos não veem as condições de segurança em que as delícias são preparadas, se os ingredientes são armazenados conforme as legislações sanitárias e se os empreendedores mantêm a rotina de higiene necessária. O ambiente das chamadas dark kitchens — negócios alimentícios voltados apenas para entregas, sem a opção de consumo no local — pode ser bastante problemático do ponto de vista da segurança dos alimentos.

Para mapear os maiores problemas que este tipo de negócio apresenta, Diogo Thimoteo da Cunha, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp e pesquisador do Laboratório Multidisciplinar em Alimentos e Saúde (LabMAS), visitou 21 estabelecimentos do tipo em Campinas, Limeira, Paulínia, Sumaré e Piracicaba para conhecer a realidade de quem está por trás das ofertas nos aplicativos. Os resultados surpreendentes mostram o quanto os espaços profissionais se confundem com a dinâmica familiar e alertam para a necessidade de apoio que muitos comércios precisam para se estabelecer com segurança. O estudo, que tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), foi publicado na revista Food Research International.

Mosca na sopa

Os fatores que interferem na maneira com que as dark kitchens se organizam para adequar seu trabalho às normas de higiene e segurança dependem do contexto em que esses negócios surgiram. Os pesquisadores classificam esses negócios de acordo com sua motivação: os empreendimentos de oportunidade, geralmente abertos por pessoas que identificam nichos de mercado que podem ser explorados, e os negócios de necessidade, abertos na busca por garantir a sobrevivência financeira. “A alimentação é um caminho seguro para o empreendedorismo porque exige pouco capital inicial e a produção precisa ser escoada de forma rápida, não há possibilidade de acúmulo de estoque”, explica Cunha. Dados da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) mostram que, durante a fase aguda da pandemia de covid-19, entre março de 2020 e julho de 2021, cerca de 300 mil restaurantes fecharam as portas no país, comprometendo 1,2 milhão de empregos.

Em 2023, um estudo anterior do grupo mapeou a prevalência de estabelecimentos do tipo nos aplicativos de entregas e constatou que, num universo de 22.520 restaurantes nas regiões de Campinas, Limeira e São Paulo, cerca de 30% eran dark kitchens. Nesta segunda etapa, os pesquisadores entraram em contato com empreendedores para conhecer suas condições de trabalho e práticas de segurança dos alimentos. A taxa de rejeição foi um dos primeiros entraves: mais de 95% das cerca de 300 dark kitchens contactadas não quiseram receber a visita dos pesquisadores. “Justamente por serem pequenos negócios, a maioria apresenta receio em mostrar suas limitações”, lembra o docente, que conseguiu visitar 21 cozinhas classificadas como independentes, compartilhadas com o espaço de casa ou totalmente domésticas. Nas visitas, eram avaliados fatores como documentação adequada, higiene dos funcionários, adequação da estrutura física e da produção e manipulação de alimentos e a limpeza geral dos locais.

Cunha afirma que a maior quantidade de problemas foram identificados em empreendimentos de necessidade, nos quais as cozinhas estão no espaço doméstico. “Há uma mistura do que é de casa e do que é do serviço”, resume. Entre os episódios que mais chamaram a atenção, ele destaca casos em que os alimentos eram preparados na mesma mesa em que a família fazia as refeições, assadeiras de bolo colocadas no chão para esfriar e até um papagaio que ficava solto no mesmo ambiente. Outro fator comum eram os casos de empreendedores que dividiam a rotina do negócio com as tarefas de casa, sem a devida higiene das mãos. “São pessoas que não enxergam essas questões como problemas, porque tratam-se de práticas que existem na vida doméstica”, ressalta o pesquisador, argumentando que muitos veem as normas de segurança dos alimentos como valores morais, não legais.

A pesquisa contou com questionários aplicados junto a 443 fiscais sanitários, que relataram a dificuldade de fiscalizar esses estabelecimentos por se tratarem de cozinhas que não ficam expostas ao público e também porque os aplicativos de entrega não exigem cadastros com comprovação de endereços, nem CNPJ no início de suas operações. Os questionários também foram aplicados a 441 consumidores, que revelaram um aspecto cultural interessante: a crença de que, se um restaurante está nos aplicativos de entrega, a segurança dos alimentos está garantida.

O professor reflete que, se por um lado, muitos estabelecimentos demandam capacitação e conscientização com a segurança dos alimentos, por outro as plataformas, que se constituem juridicamente apenas como intermediárias entre os restaurantes e os consumidores, pouco contribuem na oferta de condições para que essas práticas sejam observadas e na facilitação do trabalho de agentes sanitários. Ele lembra que as atuais normas — RDC 216, em nível federal, e CVS 5, em âmbito estadual — estão em fase de revisão e que pesquisas do tipo podem contribuir para que a legislação possa contemplar esses novos empreendimentos. “Há cursos nas plataformas de entrega de comida sobre empreendedorismo, precificação, maquinário. Mas nenhum fala sobre segurança dos alimentos. Nosso trabalho pode contribuir com isso”.

Fonte: Jornal da UNICAMP